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Afrofuturismo e a Estética da Identidade Negra na Literatura

O dia 20 de novembro marca o feriado do Dia Nacional da Consciência Negra no Brasil. A sua criação tenciona promover o debate e a reflexão sobre o papel das comunidades negras na sociedade brasileira e todos os desafios relacionados ao racismo que ainda hoje se fazem sentir. Como mulher negra, achei importante tentar, de alguma forma, pontuar a importância deste dia aqui em Portugal e como já estava a preparar um artigo sobre o Afrofuturismo, juntei o útil ao agradável.

O que é o Afrofuturismo?

Qualquer pessoa que tente analisar a fundo o panorama artístico facilmente se dará conta de que existe uma grande lacuna no que diz respeito à autenticidade da representação das comunidades africanas e afrodescendentes. Isto abrange a falta de personagens negras nas histórias, a perpetuação de estereótipos degradantes que exageram traços particulares em cada indivíduo, transformando-os numa caricatura generalizada da identidade negra (como a imagem do «negro criminoso» ou da «negra que está sempre zangada»).

Uma das primeiras respostas a este problema surgiu nos anos 50, com o poeta e compositor de jazz, Sun Ra, que começou a introduzir nas suas músicas temas da Era Espacial e reflexões sobre a sua ancestralidade africana. Antes disso, o escritor, sociólogo e ativista negro ”W.E.B” Du Bois já tinha lançado diversos contos que exploravam narrativas protagonizadas por personagens negras e elementos da ficção científica. O seu exemplo começou a ser seguido em diversas áreas artísticas, dando origem a um novo movimento que se tornou viral na cultura pop após o fenómeno cinematográfico Pantera Negra.

O escritor e crítico cultural Mark Dery foi o primeiro a utilizar a expressão Afrofuturismo no seu ensaio Black to the Future. A partir disso, o termo passou a ser definido como uma estética cultural, de autoria negra, que numa combinação de ciência, tecnologia e raça visa recuperar elementos de um passado dizimado e utilizá-los para retratar um futuro no qual os negros têm o poder de traçar o seu destino. É no fundo uma reforma artística, musical, literária e cinematográfica das experiências da comunidade negra. A youtuber e cientista social brasileira Nátaly Neri define o Afrofuturismo como «a ideia radical de que pessoas negras existem no futuro».

Temáticas Comuns

Como movimento, o Afrofuturismo abrange uma variedade de temáticas. A reivindicação de um passado que foi apagado da História é uma delas. Quando os negros eram capturados nas suas terras em África para serem vendidos à escravatura, eram forçados também a renunciar as suas raízes e, consequentemente, a sua identidade. Com o passar dos séculos, essas raízes têm sido recuperadas à luz de uma perspectiva branca e apropriadas por uma cultura dominante que desde sempre subverteu o seu verdadeiro significado. O Afrofuturismo surge como uma forma de re-imaginar essas histórias e devolver à comunidade negra o papel de agente da sua própria narrativa.

Existe uma ligação profunda entre o género da ficção científica e o Afrofuturismo. Alguns dos elementos mais utilizados pelos artistas do movimento fazem referência ao Espaço e a extraterrestres, e não é por acaso. No seu artigo, Further Considerations on Afrofuturism, o escritor e realizador britânico-ganense Kodwo Eshun percepciona os negros como sendo os primeiros extraterrestres à luz do contexto do Tráfico Negreiro, no qual eram arbitrariamente capturados e enviados para as Américas na condição de escravos. É uma forma de metaforizar o conceito de estar em território estrangeiro sem qualquer tipo de conexão com o passado.

O movimento tem, geralmente, uma abordagem muito específica à representação da mulher. Sendo o Feminismo Interseccional um dos temas mais presentes, é frequente vermos personagens femininas como plataforma para reflexões sobre género, feminilidade e sexualidade. O retrato de mulheres fortes e guerreiras que exploram a sua autonomia de forma emancipada dos factores sociais a que estão sujeitas é um dos elementos que distingue a literatura afrofuturista.

O Afrofuturismo pretende alcançar uma recuperação histórica que fortaleça o presente e explore um futuro onde os negros sejam dignos. Para isto, o movimento resgata elementos da ancestralidade africana e apresenta-os ao público de forma caricata. Um exemplo é o ideograma de um pássaro que vira a sua cabeça para trás para alcançar um ovo que se encontra nas suas costas. Este famoso símbolo é chamado Sankofa, que na língua do povo Akan significa «volta e pega». Esta técnica procura invocar sentimentos e memórias ligadas a cenas específicas do passado e atribuí-las a novos cenários, de forma a que as gerações mais novas se possam relacionar.

 

1. Imagem ilustrativa de uma Sankofa.

Literatura Afrofuturista

Os primeiros registos de literatura afrofuturista pertencem a ”W.E.B” Du Bois, um pioneiro da descolonização da imaginação com mais de 20 livros publicados. O seu primeiro conto conhecido chama-se The Princess Steel e foi escrito entre 1908 e 1910. Trata a história de um sociólogo negro, Hannibal Johnson, que demonstra a um casal de brancos uma máquina («megascópio») capaz de ver através do espaço e tempo. O casal usa o megascópio no topo de um arranha-céus em Nova Iorque e consegue observar o passado, no qual criaturas sobrenaturais se defrontam naquilo que é uma alegoria ao colonialismo. Outra das suas histórias relevantes ao movimento foi O Cometa, sobre um cometa que, após colidir com a cidade de Nova Iorque, solta um gás tóxico que dizima a sociedade, à excepção um homem negro chamado Jim Davis e uma mulher branca, de classe alta, chamada Julia.

As obras de Du Bois inspiraram uma nova geração de autores afrofuturistas. Um dos nomes de maior referência é o de Octavia Butler, uma escritora afro-americana galardoada. O seu best-seller, Kindred, publicado em 1979, conta a história de Dana, uma jovem negra que entra em contacto com os seus antepassados através de uma viagem no tempo até uma plantação de escravos. Aqui, Butler introduz o conceito de feminismo que reflete a ideia de empoderamento e controlo sobre o próprio destino. Através da exploração do comportamento das mulheres no tempo da escravatura, cria um retrato de poder feminino que se revela inabalável perante as cruéis circunstâncias.

Lisa Yazsek, professora da Escola de Literatura, Mídia e Comunicação da Georgia Institute of Technology, defende que a obra Homem Invisível, de Ralph Ellison, deve ser considerada um precedente da literatura afrofuturista. Publicada em 1952, fala-nos de um jovem negro que questiona o seu lugar num mundo dominado por brancos e que deseja ser visto, não pela sua cor e experiências que lhe são inerentes, mas pelo que realmente é. Apesar de não apresentar uma alternativa ao futuro como é comum em obras afrofuturistas, conduz a um diálogo interno na mente de futuros escritores, impulsionando, assim, o movimento.

Alguns nomes mais atuais incluem a jovem escritora Tomi Adeyemi. Numa entrevista à CBS News, a autora relata que o seu percurso no movimento começou com um pensamento utópico, a visão de uma história que não fosse pautada pela crueldade e a opressão, como se tratasse de um novo começo. Foi esse pensamento que a fez escrever a sua obra mais famosa Filhos de Sangue e Osso, um romance épico contemporâneo repleto de acção e aventura, que resgata elementos ancestrais da cultura dos Orixás.

A escritora Nnedi Okorafor trabalha as mesmas temáticas na sua obra Quem Teme A Morte. Rica em aventura, romance, magia e detalhes culturais, o enredo imagina um mundo apocalíptico onde protagonistas negros lutam para se libertar da opressão de antagonistas brancos. Temas como o racismo, colorismo e a desigualdade são esmiuçados através de um prisma fantasista. Mais uma vez, temos a presença de uma mulher protagonista, guerreira e independente, agente do seu próprio destino.

Na literatura afrofuturista brasileira é relevante mencionar nomes como Lu Ain-Zaila e Fábio Kabral.

Apesar de ser uma corrente estética relativamente recente, o Afrofuturismo já reúne um grande percurso no histórico da reconstrução da identidade negra. A capacidade dos artistas do movimento de imaginarem um contexto alternativo, com retratos positivos e livres de estereótipos coloniais beneficiou a comunidade com um novo sentido de orgulho e esperança no futuro que se avizinha.

E assim, lentamente, se vai recuperando um lugar que sempre nos pertenceu.

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