Jeanine Cummins, uma autora norte-americana, escreveu um livro sobre uma mulher mexicana que tenta atravessar a fronteira dos Estados Unidos. O lançamento da obra intitulada American Dirt (Terra Americana na sua edição portuguesa) teve imenso sucesso, mas gerou uma onda de controvérsia, sobretudo depois de ter sido recomendada pelo Clube do Livro da Oprah. Apesar de ter nascido em Espanha, a autora cresceu nos Estados Unidos e nunca teve contato com a cultura mexicana, pelo que foi acusada de apropriação cultural e de desrespeito para com a mesma, que retratou de forma desleixada e estereotipada. Ainda assim, a autora conseguiu um maior destaque em relação a outras obras escritas por autores mexicanos que abordavam o mesmo tema de forma mais fidedigna.
Que motivos levaram a que as pessoas se indignassem com este livro? Haverá alguma legitimidade nos seus argumentos? Até que ponto é que isso não é um método de castrar a liberdade de expressão de um autor?
Quero começar por esclarecer que o intuito deste artigo não é, de todo, criticar ou deslegitimar a autora e o seu trabalho, nem o de quaisquer outras obras ou autores que possam eventualmente ser mencionados. Pretendo apenas analisar este fenómeno e testá-lo face a alguns conceitos já conhecidos, de modo a incitar uma reflexão.
Liberdade de Expressão na Escrita
Uma das frases mais conhecidas entre os escritores é «escreve sobre aquilo que conheces». A não ser que a J.K Rowling seja secretamente um rapaz de 11 anos com poderes mágicos ou que José Saramago alguma vez tenha sido atacado por uma «cegueira branca» durante um apocalipse, esse é capaz de ser um dos piores conselhos de sempre, sobretudo se for levado à letra. Quantas pessoas seriam realmente capazes de escrever um bom livro se se limitassem ao que conhecem? O que seria da Fantasia, do Romance Histórico, da Ficção Científica?
Felizmente, vivemos numa sociedade que se pauta pela liberdade de expressão, principalmente no meio artístico.
A maior ferramenta de um autor é a imaginação, e é a imaginação que leva à construção do tipo de universos fantásticos e narrativas envolventes que criam uma boa história. Ainda bem que temos escritores que se aventuram a escrever sobre aquilo que desconhecem. Pessoas a escrever do ponto de vista de mulheres, homens, crianças, animais, aliens, fantasmas…
Mas e quando se trata de escrever sobre diferentes culturas? Geralmente é aqui que começa o desentendimento.
Apropriação Cultural
A apropriação cultural não é algo que deva ser abordado através de um espectro individual. Tudo o que diz respeito a este conceito insere-se numa visão social e coletiva que engloba os comportamentos da sociedade como um todo. Dito isto, podemos definir apropriação cultural como a adoção de elementos, acessórios, simbolismos ou conhecimentos de uma cultura marginalizada por membros de uma cultura considerada dominante, sem entender ou respeitar o seu contexto.
Um exemplo é o filme da Pocahontas, lançado pela Disney em 1995. Toda a gente conhece a história da mulher nativo-americana que se apaixona por um inglês e juntos conquistam a paz entre ambas as nações. O que muitos não sabem é que este conto de fadas foi inspirado na história da jovem Matoaka, que com apenas onze anos viu o seu povo a ser chacinado, foi violentada e forçada a casar com um inglês. No filme, Pocahontas é representada como uma “boa índia” porque admira o homem branco, a sua cultura, a sua religião e quer fazer parte dessa comunidade. Tudo isto não passam de projeções estereotipadas e antagonizantes que pretendem absolver os homens brancos do preconceito e genocídio étnico a que submetem os nativo-americanos até aos dias de hoje. Toda a gente conhece a Pocahontas e a sua história é exibida a crianças do mundo inteiro, mas a verdade é que não houve um único nativo-americano a lucrar com isso.
Outro exemplo de apropriação cultural ocorre quando membros de uma cultura dominante usam dreads ou um tipo específico de tranças (como as tranças nagô) como elemento puramente estético, sem compreender ou respeitar seu significado para comunidade negra. Não se trata apenas de meros penteados, são também símbolos de identidade e resistência. Em várias culturas africanas simbolizam estado civil e classe, e também existem tranças específicas para cultos religiosos e casamentos. No Brasil e em outros países da América Latina, as tranças eram usadas como um meio de comunicação entre os escravizados. Algumas eram desenhadas como mapas nas cabeças das mulheres, que mostravam o caminho para fugir das plantações. São símbolos complexos e poderosos que acabam por ser esvaziados e reduzidos a acessórios exóticos que correspondam aos ideais romantizados da cultura dominante.
Isto difere do conceito de apreciação cultural porque existe um desequilíbrio nas hierarquias de poder, semelhante à do tempo da colonização. Esse tipo de desequilíbrio é perceptível, por exemplo, quando o valor de elementos característicos de uma cultura marginalizada apenas é reconhecido quando utilizada dentro da cultura dominante.
Voltando a pegar no exemplo do cabelo, quando uma mulher branca decide fazer dreads, é elogiada e é-lhe reconhecida a sua beleza, enquanto uma mulher negra, que até pode ter dreads do seu cabelo natural, é taxada como suja e indesejável ao ponto de lhe serem vetadas oportunidades e direitos básicos.
Apropriação Cultural na Literatura
Na literatura, este fenómeno reproduz-se de diversas formas. Uma delas inclui a monopolização de um mercado literário que se torna inacessível a quem, além de escrever as histórias, também as vive. Autores de uma cultura dominante ganham mais destaque ao apropriarem-se de vivências de uma minoria enquanto estas lutam por um lugar nas prateleiras, ainda que tenham mais propriedade para falar do assunto. Uma história sobre racismo será mais bem recebida se o autor for branco e uma história sobre racismo escrita por um branco, se não for bem estudada, referenciada e preparada, irá resultar numa compilação de estereótipos que acabarão por reforçar uma imagem negativa sobre a comunidade negra. Um exemplo disto ocorre no livro As Serviçais de Kathryn Stockett, que após o lançamento foi fortemente criticado pela comunidade afro-americana. A história distorce e banaliza a experiência das trabalhadoras domésticas negras e glorifica o comportamento violento dentro da comunidade negra. Além disso, o livro chama-se As Serviçais, mas no fundo é sobre uma mulher branca que ajuda os negros ao escrever um livro sobre eles, colocando, mais uma vez, os negros no papel secundário numa história que deveria ser protagonizada por eles. Aqui, além da apropriação cultural, insere-se um outro conceito chamado “Complexo do Salvador Branco”.
Isto significa que brancos só podem escrever sobre brancos e negros só podem escrever sobre negros? Onde se traça a linha entre apropriação cultural e liberdade artística?
Não existe uma resposta exata a esta pergunta. O que se pretende não é instalar uma ditadura artística, mas cultivar alguma sensibilidade. Um autor que escreve uma história não assume apenas um compromisso artístico, mas também um compromisso cultural e social. Além de pensar se o público vai gostar da sua história, precisa de considerar que impacto essa história terá na sociedade, sobretudo se for uma história que retrata uma cultura marginalizada à qual o autor não pertence. Faz parte da responsabilidade do autor reconhecer a sua posição de privilégio e escrever uma história que agregue a essa cultura, não que a diminua ou retrate de forma superficial. É aqui que entra a parte da pesquisa e da preparação prévia. Ainda vivemos numa sociedade profundamente desequilibrada no que toca a relações de poder e a apropriação cultural é um dos muitos mecanismos que sustentam essas hierarquias. Ao ler um livro, as pessoas querem ver-se representadas, sobretudo as pertencentes a minorias que estão acostumadas a ocupar papéis secundários, tanto na realidade como na ficção. Menosprezar esta responsabilidade é apenas mais uma forma de apoiar um sistema estrutural que por si só já discrimina.
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