Capa: ★★★★☆
Edição: ★★★★★
Escrita: ★★★★★
Relevância do Tema: ★★★★★
Responsabilidade: ★★★★☆
Sentimento: ★★★☆☆
Apreciação Geral: ★★★★☆
Opinião
«Sou pobre, sou negra, talvez sou feia e não sei cozinhar (…) Mas tô aqui.»
Demorei a gostar deste livro. Deixei-me afectar pela violência e pelo grafismo da primeira metade da história que, inicialmente, tomei por uma tentativa de espremer o trauma negro e transformá-lo num comodismo digerível para entretenimento. As vivências retratadas eram de um realismo tão pungente que, pelo menos na primeira metade do livro, ofuscaram por completo qualquer propósito representativo.
Celie, uma jovem negra de 14 anos, sofre abusos inomináveis nas mãos do pai e, mais tarde, é forçada a casar com um homem que a trata como propriedade, afastando-a da irmã e de qualquer réstia de dignidade. Celie verte todos os seus sentimentos em cartas que endereça a Deus, como testemunho da sua perseverança e confiança em um ser superior capaz de garantir um sentido à miséria que é a sua vida. Em pouco mais de 100 páginas acompanhamos uma protagonista submissa, de espírito fraco, quebrada pelas circunstâncias e resignada com o seu destino. É um retrato fiel das perspectivas de muitas mulheres negras sujeitas a um sistema opressivo e discriminatório assente não só nas pretensões racistas de uma sociedade dominada por brancos, mas também nas fundações patriarcais de um mundo dominado por homens. As dinâmicas de poder descritas neste livro exploram uma realidade muitas vezes desvalorizada, que diz respeito aos efeitos do patriarcado nas relações entre mulheres negras e homens negros.
Pelo meio, a autora brinda-nos com algumas personagens que fogem ao estereótipo de fragilidade feminina da época. Destaco Sophie e Shug, duas mulheres que se recusam a vergar às expectativas e padrões de género que lhes são violentamente impostas. Foram o alívio de uma leitura que nas primeiras cento e tal páginas prenunciou uma atrocidade vaga que pouco me atraiu. O meu entusiasmo por esta história começou ao mesmo tempo que o arco de evolução de Célie. Foi um desabrochar lento, gradual, lindo e poderoso que culminou num final inspirador. Foi a alma da história e o derradeiro ponto de viragem da minha experiência de leitura.
Em relação à escrita, e, em especial, às opções feitas pela tradutora na adaptação para o português, sei que existe alguma falta de consenso, mas, pessoalmente, achei que o formato se adequou na perfeição ao contexto, não apenas das personagens e da história, mas também do que se vive em Portugal. Foi uma tática engenhosa de transpor o papel importante da língua para uma realidade linguística mais facilmente alcançável pelos leitores portugueses e dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Um excelente trabalho da tradutora, Tânia Ganho, que contribuiu para a fluidez da leitura e para a proximidade do leitor com a história
Além do racismo e das questões de género, há uma abordagem muito relevante do papel da religião na sociedade e a forma como o colonialismo influenciou as noções de Deus, da Igreja e da Bíblia como baluarte da prática religiosa. Porque é que o imaginário de Deus corresponde, no seu colectivo, à imagem de um homem branco? Quem espalhou essas concepções e quem beneficia da sua instrumentalização?
Não posso deixar de referir também o tratamento da beleza, do corpo e da sexualidade neste livro. Há uma mensagem muito forte sobre auto-aceitação que dá através do desenvolver de uma relação linda entre Celie e Shug.
“A Cor Púrpura” é uma obra de uma genialidade e intemporalidade irrefutáveis. Não é um livro para quem procura acalentar a consciência, mas uma munição de dor, esperança e aprendizagem que não olha a meios para nos atingir. Um livro que ficará para sempre na minha memória.
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